Este conto foi escrito em 2017 e estava perdido em um pendrive cor-de-rosa. Achei simpático e postável. Não sou muito afeita à literatura mágica, mas sempre gosto de mágica na literatura, hehe.
O apartamento da tia Val ficava em um bairro nobre da cidade, elite mesmo, mas era um prédio antigo, a pintura desgastada pelo tempo, as paredes sem uma boa lavagem há décadas. A maioria dos moradores eram senhorinhas com uma pensão polpuda, que eventualmente recebiam a visita dos netinhos – recepcionados com nega maluca e biscoitinhos finos, preparados pelas empregadas, chamadas delicadamente de ajudantes, mulheres negras coloridas como morenas pelas patroas, tão benevolentes com a classe trabalhadora –, mas que viviam às voltas de prestadores de serviço, encanadores, pedreiros, eletricistas, todos muito úteis para a manutenção doméstica e das conversas de corredor, as indicações, as reclamações. Tia Val talvez fosse dois ou três anos mais nova que as senhorinhas, mas não se comportava como uma, nem tinha netos, menos ainda paciência para papo de corredor.
O apartamento da Tia Val era enorme, algo em torno de 150 m², mas parecia minúsculo. Era um depósito. Tia Val preferia apelidá-lo de “camarim” ou “baú de uma vida”, mas a verdade é que era um entulho de passado. Abríamos a porta e éramos esbofeteados por um aroma misto de mofo, cachorro e alfazema. Tia Val vivia perfumada, adorava uns vidrinhos coloridos entupidos de líquidos açucarados, cefaleicos, intensos e grudentos. Beijar Tia Val era levar consigo seu cheiro por 24 horas, cheiro forte de mulher, gargalhada e mistério. Tia Val, na verdade, ria muito pouco, mas sua risada era inesquecível. Roufenha, grave, nascida dos pulmões e declamada na boca arredondada, delineada pelo lápis vermelho e preenchida por um batom metálico encontrado em suas taças de vinho tinto espalhadas pela sala. Ela tomava um gole e as largava pela mesa, aparador, braço de sofá. O sofá, aliás, era a peça cordial da casa – de oncinha, anos 80, coberto por manchas de origem desconhecida, a fumaça de Marlboro impregnada em seus pelos. Aquela oncinha parecia viva, prestes a rugir quando nos sentávamos nela. Tia Val tinha uma bota com o mesmo tecido e com o mesmo motivo, não havia ninguém no mundo que tivesse tal calçado e, honestamente, se alguém tivesse, duvido que houvesse coragem o bastante para usá-lo. Tia Val não nos recebia de pantufas, mas com essa bota, bico fino, uma corrente prateada separado o recorte de onças do couro que revestia o sapato na parte de trás. Os ambientalistas enlouqueceriam com esse achado. Minha irmã, que anos depois se tornaria uma consultora de imagem, afirma que jamais vira nada tão brega na sua vida. Eu desejaria saber onde foram parar essas botas – alguma instituição de caridade? lata do lixo? – porque eu as queria. Não para calçá-las, mas para ter uma recordação da tia Val. Por onde teriam andado aquelas botas, por quais esquinas silentes, bares ou bingos? Jamais saberei. Os passos de Tia Val sempre foram cercados de incógnitas, sem mapas ou roteiros, nenhuma pegada a servir como vestígio ou indício de sua presença.
Aquela história do olho, por exemplo.
Ao entrar no apartamento da Tia Val, eu sempre me assustei com uma boneca que ficava próxima a uma mesinha que sustentava um abajur franjado três-toques. Era uma boneca loura, cabelos lisos e soltos, bochechinhas rosadas e nariz empinado. Ela ficava em pé, estática, uma boneca, afinal, de contas, mas parecia nos vigiar. De tempos em tempos, Tia Val mudava as roupinhas dela, o que lhe impingia uma aura, uma aura assustadora, nos perseguindo e nos inquerindo na sua imaterialidade plástica. As crianças detestavam aquela boneca. Um dia, vi Tia Val penteando os cabelos daquela boneca, um carinho e paciência que não lhe pertenciam, mas que devotava àquela menina-brinquedo. Mesmo parada, mesmo engessada no mesmo lugar, mesmo sendo uma habitante sabida e esperada, aquela boneca loura nos era angustiante. Ela era um fantasma sem sê-lo. Até o cachorro da Tia Val, o Eduardo, um dálmata magricela e orelhudo, parecia desconfiado daquela boneca. Cheguei a vê-lo chorar uma vez ao passar por ela, mas ninguém acreditou em mim, falaram em delírios de criança, mas vi nas retinas líquidas de Eduardo um medo genuíno.
Também não sei que fim levou aquela boneca que era a um só tempo decorativa e porteira.
Mas voltando ao olho.
Quando eu achava que nada mais bizarro poderia viver no apartamento de Tia Val, apareceu aquela história. Foi minha mãe quem contou para uma amiga, em voz baixa e cortina fechada, mas eu e minha irmã ouvimos, aí a lenda virou pública.
Tia Val fora casada, mocinha, com um tenente do Exército. Homem como não se faz mais. Alto, dourado, lindo. Conheceram-se num baile quando Tia Val era novinha, ele se encantou (ela ainda não deveria ter aquele capacete de cabelos, muito curtos e muito vermelhos, imagino eu) e a levou para a capital, onde servia. Era mais velho, muito severo e rígido, mas gentil com a esposa. Poucos meses de casado, foi mandado para uma batalha na fronteira do Brasil. Era contra uma tribo indígena, o governo queria desapossá-los de umas terras produtivas, mas os donos do pedaço eram valentes e destemidos. Tanto que deram uma surra nos combatentes. O marido da Tia Val, como um dos comandantes da expedição, foi preso e vítima da antropofagia. Os indígenas preservaram apenas algumas partes do corpo que ajudassem no reconhecimento. Orelhas, tufos de pelos e até dentes foram entregues ao Exército como a prova da derrota dos guerrilheiros. Um colega, compadecido, escondeu o olho azul do amigo e o levou para Tia Val, que depois de mais de sete semanas sem notícia do marido, descobriu-se viúva, proprietária de uns poucos bens do falecido e, dali em diante, do Olho do dito-cujo. Era quase a Perpétua, de Tieta, mas Tia Val preferia a privacidade e o segredo. Colocou o Olho do marido num aquário e o encerrou num armário. Dizia-o um amuleto, praticamente uma figa da sorte. Enquanto preservasse o Olho, estaria protegida. Dinheiro não mais faltou, nem oportunidades em suas aventuras profissionais. Viajou muito. O Olho só não permitia namoros, pois era muito ciumento.
Desde então, tive ânsias de curiosidade para ver o Olho. Queria encontrá-lo, tocá-lo. Entrava no apartamento da Tia Val, me desviava da presença daquela boneca e, sorrateiramente, procurava pelos cômodos escuros o aquário com o Olho. Ficava imaginando se era um aquário cheio de água, minha irmã apostava em colírio. Minha mãe ria da nossa criatividade, falava que não tinha nada daquilo.
Mas teve aquela vez.
A casa da Tia Val relativamente cheia, eu e uma prima fingimos brincar de esconde-esconde e fugimos para o quarto.
Não era um ambiente para crianças, vamos descrevê-lo assim.
E lá, mergulhado num breu e em miasmas que nunca decifrei direito, eu vi um vidro pequeno, arredondado, menor do que eu supunha. Ali dentro, a órbita saltada, muito branca, apenas uma pequena veia rajando aquela aquele globo alvo. Pupilas dilatadas, a íris muito azul, uma tonalidade celeste que me fez suar frio. Estava muito escuro, mas eu vi aquele Olho, e ele me viu também, me viu profunda e violentamente. Ele parecia um Olho brabo, não gostou de eu tê-lo descoberto, e eu posso quase afirmar que mais uma veiazinha o maculou, como uma veia que salta de raiva em nosso pescoço quando estamos irritados. Fiquei tão nervosa que não consegui pegá-lo e senti-lo em minhas mãos, o tato gelado de morte e vida, a textura lisa, mas pegajosa de um órgão esmaecido, mas ainda pujante, porque desmaiei antes.
A pequena festa na sala parou, foram me acudir, me tiraram do quarto. Desde então, Tia Val o manteve trancado.
Minha mãe fala que foi o ar abafado de um ambiente hermético, ali não se abria janela há mais de década. Mas eu sei que desmaiei foi de medo.
Minha irmã, anos mais tarde, Tia Val já falecida, jura (dedinhos em cruz, beijinho e tudo) que a ouvira confessar para alguém (ou teria lido numa carta?) que aquela boneca era uma filhinha dela, fruto de um romance proibido. Tia Val sabia que o Olho ficaria furioso com aquela traição póstuma – qualquer homem depois dele seria um amante -, por isso o manteve escondido numa caixa dentro do guarda-roupa por anos, desde que soube da gravidez. Um dia, Eduardo, o cachorro, sem querer (não é óbvio?), descobriu a caixa, a abriu e libertou o Olho, que ao ver a criança brincando na sala, a petrificou com seu ódio. A alma da menina ficou congelada para sempre no corpo da boneca.
Minha irmã disse que era isso mesmo, tintim por tintim.
Quanta fantasia é capaz de criar a cabecinha de uma criança.
Sei lá.
Fato é que eu nunca quis me envolver com ninguém de olho azul.
AMEI! Tem um humor e um toque de realismo mágico que eu não imaginava que você tivesse hahaha. A tia Val já me parecia meio estranha desde o primeiro parágrafo, mas cada parágrafo adicionou mais algum detalhe. Muito legal.